Introdução: a doença cardíaca permanece como a principal causa não obstétrica de mortalidade materna no ciclo gravídico puerperal, além de predispor o neonato a complicações. Objetivo: analisar as complicações neonatais e maternas na gravidez de mulheres com cardiopatias. Método: estudo de série de casos realizado com coleta de dados retrospectiva por meio de prontuários. Treze gestantes cardiopatas, atendidas de 2005 a 2014, constituíram a amostra. Procedeu-se à análise de complicações na gravidez: tempo de pré-natal, tempo de gestação, via do parto, complicações durante a gestação, medicações utilizadas na gravidez, amamentação no puerpério recente e óbito. Quanto ao neonato: peso, comprimento, índice de Apgar, crescimento intrauterino restrito, tempo de permanência em unidade de terapia intensiva neonatal, oligodramnia, prematuridade e óbito. Resultados: das 13 gestantes, houve acompanhamento de 15 gestações. Não ocorreram mortes maternas nem neonatais. Todas as gestações foram a termo, tipo de parto cesáreo e com início do pré-natal no 1.º trimestre. Das 15 gestações acompanhadas, cinco tiveram complicações. Com relação aos neonatos, todos possuíam peso adequado para idade gestacional e três recém-nascidos precisaram de internação na unidade de terapia intensiva neonatal. Conclusão: verificou-se a incidência de complicações maternas em 33% das gestações, das quais 60% ocorreram em mulheres com valvopatia. As complicações ocorridas não tiveram relação direta com as cardiopatias. Pode-se inferir que o pré-natal associado à equipe multidisciplinar e a estabilidade da doença cardiovascular foram fundamentais para a ausência de complicações relacionadas às cardiopatias.
A gestação, ao modificar a fisiologia materna, promove alterações metabólicas, anatômicas e hemodinâmicas no corpo da mulher. Esses fenômenos podem agravar quadros mórbidos prévios ou produzir alguns sintomas que, mesmo fisiológicos, se apresentam prejudiciais.1
Devido às alterações esperadas na gestação, mulheres com lesões cardíacas de caráter obstrutivo podem experimentar, pela primeira vez, sintomas nesse período. Isso se deve ao aumento da pré-carga gerado pelo incremento da volemia. A redução na pós-carga, somada à vasodilatação sistêmica, pode piorar ainda mais a sintomatologia nessas pacientes.2
O estado de hipercoagulabilidade da segunda metade da gestação e do puerpério eleva o risco de pacientes com lesão mitral, fibrilação atrial e próteses valvares adquirirem eventos tromboembólicos. Em vista dessas modificações fisiológicas, justifica-se, portanto, que as lesões valvares estenóticas apresentem uma evolução clínica desfavorável quando comparadas às de insuficiência.3
A doença cardíaca permanece como a principal causa não obstétrica de mortalidade materna no ciclo gravídico puerperal.4
Conforme demonstrado por Ávila et al.,4 em estudo com 1000 gestantes cardiopatas, encontrou-se doença cardíaca de origem reumática em 55,7% dos casos e doenças congênitas em 19,1%. Durante o estudo, 76,5% das gestantes cardiopatas não apresentaram complicações cardiovasculares e, entre as complicações, a mais relevante foi a insuficiência cardíaca, o que representou 12,3% dos casos entre os 23,5% restantes.4
As complicações mais comuns são o parto prematuro, o baixo peso para a idade gestacional e a morte perinatal.5 Siu et al.,6 em estudo com 562 gestantes cardiopatas, encontraram intercorrências neonatais em 122 gestações (20%). Akther et al.,7 em estudo com 60 grávidas com valvopatias, encontraram a estenose mitral como a valvopatia mais comum, representando 50% das anomalias valvares.
A avaliação da relação entre função cardíaca materna e desfechos da gestação desempenha um importante papel na redução dos riscos para mulheres grávidas com doença cardíaca.5
Desse modo, faz-se necessário o desenvolvimento de mais estudos nessa área.
Foi realizado um estudo de série de casos com coleta de dados retrospectiva por meio de prontuário nos arquivos do Hospital Santa Casa de Misericórdia de Vitória-ES (HSCMV).
A amostra foi composta por gestantes cardiopatas atendidas no ambulatório de Obstetrícia e/ou Cardiologia do HSCMV, no período de 1º de janeiro de 2005 a 1.º de janeiro de 2014.
Critérios de inclusão: gestantes portadoras de cardiopatias: valvulopatias, doenças congênitas, doença arterial coronariana, miocardiopatias, pós-operatório de cirurgias cardíacas e arritmias cardíacas; critérios de exclusão: mulheres com alterações morfológicas do sistema reprodutor e doenças renais.
Foi analisada a incidência de complicações na gravidez em relação à mãe e ao neonato: no que se refere a este, analisaram-se peso, comprimento, índice de Apgar, crescimento intrauterino restrito, tempo de permanência em unidade de terapia intensiva neonatal, oligodramnia, prematuridade e óbito; no que diz respeito àquela, analisaram-se tempo de pré-natal, tempo de gestação, via do parto, complicações durante a gestação, medicações utilizadas na gravidez, amamentação no puerpério recente e óbito.
O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em pesquisa pela Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória – EMESCAM. Todos os dados foram compilados utilizando o programa Microsoft Excel®.
Com relação ao desfecho materno, não ocorreram mortes. Somente um aborto foi registrado, sendo ele em gestação prévia ao acompanhamento cardiológico especializado. O acompanhamento pré-natal de todas as gestantes iniciou no primeiro trimestre de gestação.
Das 15 gestações acompanhadas, dez (67%) não tiveram complicações. As complicações registradas encontram-se na tabela 1.
TABELA 1– Complicações gestacionais observadas
Doenças congênitas |
Trombose venosa profunda |
Pré-eclâmpsia |
Valvopatias |
Oligodrâmnio, descolamento prematuro de placenta, diabetes gestacional |
Diabetes gestacional |
Hematoma de parede abdominal |
Fonte: Próprio autor
Em relação aos medicamentos utilizados durante as gestações, as mulheres que não apresentaram complicações na gravidez, no parto e nos neonatos fizeram uso de nitrofurantoína, enoxaparina e metildopa. Nas gestações com intercorrências, os medicamentos utilizados foram propranolol, furosemida, enoxaparina, captopril, levotiroxina, succinato de metoprolol, penicilina G benzatina e escitalopram.
As cardiopatias acompanhadas estão descritas na tabela 2.
TABELA 2– Cardiopatias maternas analisadas (n=15)
Cardiopatias maternas analisadas | ||
Valvopatias | Gestações | |
Estenose mitral e dupla lesão aórtica | 1 | 6,67% |
Insuficiência aórtica e insuficiência mitral (IM) | 1 | 6,67% |
Prótese mecânica mitral e aórtica | 1 | 6,67% |
Insuficiência mitral | 1 | 6,67% |
Prolapso valvar mitral (PVM) | 4 | 26,66% |
Doenças congênitas | ||
Persistência do canal arterial não corrigida | 1 | 6,67% |
Persistência do canal arterial corrigida | 2 | 13,31% |
Comunicação interventricular corrigida | 1 | 6,67% |
Estenose pulmonar congênita | 1 | 6,67% |
Síndrome de Marfan (PVM e IM) | 1 | 6,67% |
Síndrome de Marfan (prótese mecânica aórtica, PVM e IM) | 1 | 6,67% |
Fonte: Próprio autor
Todas as mulheres do estudo tiveram seus partos por via cesariana e amamentaram no puerpério recente.
Com relação ao desfecho neonatal, a avaliação nutricional demonstrou que todos possuíam peso adequado para a idade gestacional.
A média de comprimento, ao nascer, dos neonatos foi 48,4cm e desvio padrão de 1.3.
Todas as pacientes acompanhadas tiveram sua gestação finalizada com 38 ou 39 semanas, ou seja, não ocorreram nascimentos prematuros.
Não ocorreu nenhum caso de crescimento intrauterino restrito.
Com relação ao Apgar, no primeiro minuto variou de 6 a 10 (MA 8.26; DP 1.03) e no quinto minuto variou de 8 a 10 (MA 9.40; DP 0.63).
Três recém-nascidos (20%) necessitaram de internação na unidade de terapia intensiva neonatal: o primeiro, filho de gestante com insuficiência mitral, precisou de três dias de fototerapia; o segundo, filho de gestante com insuficiência mitral e insuficiência aórtica, de dois dias de fototerapia; e o terceiro, filho de gestante com estenose mitral e dupla lesão aórtica, de três dias de internação devido à síndrome de aspiração de mecônio.
Ocorreu um episódio de trombose venosa profunda (TVP) durante o primeiro trimestre de gestação em paciente portadora de estenose pulmonar. Não há na literatura relato de relação causa-efeito entre a presença de estenose pulmonar e o aumento de incidência de TVP.
Estudos epidemiológicos têm relatado incidência de até 12 casos de TVP para cada 10.000 gestações, além de estimar uma frequência de TVP cinco vezes maior em mulheres grávidas, em comparação com mulheres não grávidas de mesma faixa etária.8
É possível explicar a predisposição à TVP no primeiro trimestre da gestação, pois, nesse período, há elevação da pressão venosa devido a um hiperfluxo nas artérias hipogástricas e ilíacas comuns, graças ao relaxamento da musculatura lisa vascular e da abertura de anastomoses arteriovenosas progesterona mediada.9
Segundo meta-análise de 12 estudos sobre o impacto do trimestre na ocorrência de trombose, 22% dos casos ocorrem no primeiro trimestre, reforçando a hipótese de não relação entre a cardiopatia e o evento ocorrido.10
Neste estudo, houve dois casos de diabetes mellitus gestacional (DMG), identificados numa mulher de 37 anos portadora de estenose mitral e dupla lesão aórtica e numa mulher de 40 anos portadora de prolapso valvar mitral. DMG é definido como qualquer nível de intolerância à glicose, resultando em hiperglicemia de gravidade variável, com início ou diagnóstico durante a gestação.11
A paciente que apresentou DMG neste estudo se incluía no grupo de risco para desenvolver essa patologia, por ter idade superior a 25 anos no momento da concepção.11
A incidência de DMG no Brasil é de 2,4% a 7,2%, dependendo do critério utilizado para o diagnóstico.12 Faltam estudos procurando estabelecer se as cardiopatias são uma causa de DMG, porém atualmente não se consideram as cardiopatias maternas como fator de risco.11 O DMG encontrado na mulher portadora de dupla lesão aórtica e de estenose mitral pode ser um achado ocasional.
Neste estudo, foi documentado um caso de uma paciente de 40 anos, já citada na discussão, portadora de prolapso valvar mitral, que apresentou descolamento prematuro da placenta, oligodramnia e DMG. A gestação de mulheres com idade superior a 35 anos associa-se ao maior risco de complicações maternas, fetais e obstétricas.13
A oligodramnia tem como causas a ruptura prematura das membranas amnióticas, a insuficiência placentária, a presença de anomalias fetais, as síndromes hipertensivas, o tabagismo e a pós-maturidade.14, 15
O descolamento prematuro da placenta pode decorrer de vários processos fisiopatológicos, muitas vezes de origem indeterminada.16 Sendo uma das principais causas deste evento a doença hipertensiva. O oligodrâmnio e a idade materna são apontados pela literatura como possíveis fatores de risco.17, 18
Durante nosso acompanhamento, uma gestante portadora de persistência de canal arterial não corrigida apresentou pré-eclâmpsia, patologia que afeta 8% de todas as gestações e é a principal causa de morte materna e perinatal nos países em desenvolvimento.19
Após a análise dos dados da literatura, não foi encontrada associação entre a pré-eclâmpsia e doença cardíaca congênita, podendo-se inferir que a ocorrência desse episódio de hipertensão na gestação não foi motivada pela cardiopatia de base.
Uma paciente portadora de prótese mecânica mitral e aórtica, em anticoagulação, apresentou como complicação o hematoma de parede abdominal após a cesárea eletiva. A incidência de hematoma abdominal na população é em geral pequena. Os fatores de risco mais importantes associados a essa complicação são anticoagulação (fator mais importante), doença renal crônica, cirurgia e trauma.20
É provável que o hematoma apresentado por essa paciente esteja relacionado com o uso de anticoagulantes, relacionado de forma secundária à cardiopatia.
Durante as gestações que cursaram com complicações neonatais, 3 no total, alguns medicamentos foram utilizados. Podem-se identificar essas gestações em: 1 – uso de propranolol com furosemida; 2 – uso de propranolol isoladamente; e 3 – uso de levotiroxina junto de succinato de metoprolol e penicilina G benzatina
A levotiroxina pode ser usada seguramente durante a gestação, sem efeitos adversos sobre o feto.21 A penicilina G benzatina não possui efeitos adversos relatados em fetos, porém não há estudos controlados sobre seu uso na gestação; portanto, é recomendado o uso quando os benefícios superam os riscos.22 Propranolol, furosemida e metoprolol devem ser usados somente quando os benefícios superam os riscos e não há outra droga de escolha.23-25
Os possíveis efeitos colaterais do propranolol são bradicardia e hipoglicemia fetal e neonatal, crescimento intrauterino restrito, policitemia, trombocitopenia e hipocalemia.23 A furosemida pode ser responsável por anomalias congênitas nos neonatos.24 O metoprolol não possui efeitos adversos fetais relatados, porém não há estudos controlados sobre seu uso na gestação.25 Os possíveis efeitos adversos dessas medicações não foram observados nos neonatos. Essas drogas podem ser descartadas como causas das intercorrências neonatais.
Dois recém-nascidos necessitaram de internação na UTIN de dois a três dias para a realização de fototerapia. A fototerapia é realizada em recém-nascidos para o tratamento de icterícia.26
Pode haver a hiperbilirrubinemia caso ocorra incompatibilidade ABO ou Rh entre mãe e feto. A incompatibilidade ABO ocorre praticamente somente quando a mãe é grupo sanguíneo O.27
Incompatibilidade ABO ocorre em 20% a 25% das gestações, e doença hemolítica do recém-nascido se desenvolve em 10% dessas gestações.28 Outras causas de hiperbilirrubinemia neonatal é o início da amamentação, uso de diazepam pela mãe na gestação e diabetes gestacional.27
Dos recém-nascidos estudados em nossa pesquisa, os que necessitaram de internação para fototerapia possuíam o tipo sanguíneo A+ com mãe O+ e tipo sanguíneo A+ com mãe B+. A incompatibilidade sanguínea do sistema ABO observada no primeiro caso é a provável causa da necessidade de internação por três dias para fototerapia desse neonato. No segundo caso, o recém-nascido precisou ser internado durante dois dias para a realização de fototerapia, mas a causa da icterícia não foi esclarecida.
Um recém-nascido precisou ser internado na unidade de terapia intensiva neonatal devido à síndrome de aspiração meconial, que ocorre entre 1% e 3% das gestações. Desfecho fatal ocorre entre 5% e 40% dos casos, devido a complicações em pequeno e longo prazo.29 O exato mecanismo da liberação de mecônio nesse caso não pode ser esclarecido.
De forma consonante com os dados já demonstrados na literatura por Ávila et al.,4 das gestações que seguiram o protocolo de acompanhamento cardiológico especializado, 67% foram livres de intercorrências.
Cada cardiopatia, mesmo apesar de suas peculiaridades, pode ser potencializada devido às alterações fisiológicas da gravidez.
Verificou-se a incidência de complicações maternas em 33% das gestações, das quais 60% ocorreram em mulheres com valvopatia.
É importante ressaltar que as complicações ocorridas poderiam ter sido encontradas em gestações normais, não tendo relação direta com as cardiopatias.
Pode-se inferir que o pré-natal associado à equipe multidisciplinar e a estabilidade da doença cardiovascular foram fundamentais para a ausência de complicações relacionadas às cardiopatias.
Osmar Araújo Calil1; Afonso Dalmazio Souza Mario2; Fernando Augusto Rozário Garcia3; Renan Barreto da Silva Caminha4; Roberto Ramos Barbosa5; Tiago De Melo Jacques6; Renato Giestas Serpa7; Luiz Fernando Machado Barbosa8
1 Doutor pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – USP, Cardiologista.
2,3,4 Acadêmicos Medicina, Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória – EMESCAM.
5,6,7,8 Médicos Cardiologistas da Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória – EMESCAM.