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O PÚBLICO E O PRIVADO EM UM PROCEDIMENTO DE SAÚDE DE ALTA COMPLEXIDADE

Submetido em 23 Setembro 2016

Resumo

Os atendimentos às atividades de alta complexidade no Brasil são realizados por aporte do custeio federal. O que se vê atualmente é uma articulação entre os setores públicos e privados, a fim de prover, por parte do setor privado, os equipamentos necessários para o exercício do atendimento de alta complexidade cabendo ao sistema público o financiamento dos serviços. Este artigo tem por objetivo conhecer as relações das ações do sistema público e do privado na realização de um procedimento de alta complexidade e, para tanto, será feito o relato do caso de um paciente submetido à transplante pulmonar.

Introdução

Alguns dos procedimentos de alta complexidade, como os transplantes de órgãos, são custeados para a população e esse custeio é, em sua grande maioria, pelo

sistema público de saúde. No Brasil o programa de transplantes, considerado o maior do mundo, acontece pelo financiamento público. No Espírito Santo, as atividades transplantadoras foram impulsionadas através das parcerias entre governo e serviços privados de saúde. A maior parte de seu financiamento é de responsabilidade do setor público, realizado através do Ministério da Saúde, não afetando o teto financeiro de estados e municípios. O Estado é responsável pela gerência do sistema, regulado pelo Sistema Nacional de Transplantes.

O que se vê atualmente é uma articulação entre os setores públicos e privados, a fim de prover, por parte do setor privado, os equipamentos necessários para o exercício do atendimento de alta complexidade, cabendo ao sistema público o financiamento dos serviços; um verdadeiro mix público-privado, no que se refere à prestação de serviços de saúde no país.1

O governo tem buscado estratégias para que sejam reduzidos os entraves ao progresso dos transplantes de órgãos. Oferece às populações, onde não existe o programa, a possibilidade de usarem recursos destinados ao Tratamento Fora de Domicílio (TFD) para o deslocamento a um centro transplantador. O centro transplantador deve possuir uma equipe capacitada e especializada no manejo pré, intra e pós-operatório, composta por diversos profissionais que atuarão de forma interdisciplinar, visando à otimização das condições biológicas, psíquicas e sociais dos pacientes.2 Tal fato está sendo parcialmente realizado no Espírito Santo, pois os pacientes têm sido direcionados para o Grupo de Transplantes de Pulmão do Centro de Transplantes do Hospital Meridional.

Esta pesquisa tem por objetivo conhecer as relações das ações do sistema público e do privado na realização de um procedimento de alta complexidade (transplante pulmonar). Para tanto, será apresentado o caso de um paciente com fibrose pulmonar, aqui identificado como Cachoeiro, que apresentava falta de ar aos pequenos esforços, com limitação parcial das atividades de vida diária e era internado em sua cidade quase todo mês. Possuía convênio privado de saúde e recebeu o TFD para realizar transplante pulmonar em Porto Alegre.

Relato de Caso

O paciente foi avaliado pela equipe multidisciplinar do ES e encaminhado para o Hospital Santa Casa de Porto Alegre, onde realizou o transplante pulmonar. O fluxo de atendimento, neste serviço, se faz da seguinte forma: 1) assistente social para avaliação sobre questões de moradia, apoio social, familiar e de renda; 2) nutricionista para avaliação do perfil nutricional; 3) enfermagem para avaliação e orientação sobre os processos hospitalares; 4) fisioterapeuta para avaliação do estado físico e orientação sobre a reabilitação pulmonar; 5) avaliação psiquiátrica; 6) equipe clínica do transplante.

Cachoeiro era um senhor com 60 anos, residente em Cachoeiro de Itapemirim-ES, casado e morava com a esposa, trabalhava como joalheiro e estudou até o ensino médio completo. Sabe-se que a questão escolaridade está diretamente relacionada ao acesso aos serviços de saúde, principalmente aos serviços privados e, talvez por isso, aos serviços de alta complexidade do SUS. Segundo Noronha e Andrade,3 a escolaridade do chefe da família tem impacto significativo na decisão da procura ao serviço de saúde. Os indivíduos, exclusivamente atendidos pelo SUS, têm nível de escolaridade menor e fazem uso quase que exclusivamente da rede pública, na maior parte procurando por consulta médica ou outros profissionais, com predomínio ambulatorial.4

A renda familiar de Cachoeiro era entre oito a dez salários mínimos, e ele possuía convênio privado de saúde. Segundo Ribeiro e col.,4 apenas 9,2% dos pacientes, atendidos exclusivamente pelo SUS, tinham renda per capita maior do que dois salários mínimos, enquanto que na população, com convênio privado, este número foi de 51,8%. Cabe salientar que os indivíduos com plano de saúde possuem uma probabilidade 56% maior de conseguirem uma internação, e consequentemente a realização de determinados exames, do que aqueles atendidos pelo SUS.3

Discussão

É paradoxal pensar que, embora a maioria dos transplantes realizados no Brasil seja feita pelo sistema público, aqueles que desfrutam de assistência privada conseguem ser avaliados mais rapidamente, e provavelmente serem transplantados, enquanto que os pacientes atendidos exclusivamente pelo SUS não conseguem realizar todos os exames em tempo hábil, ficando invariavelmente fadados ao óbito. Segundo Souza (2011),5 “no setor de saúde, a imposição da lógica do mercado legitimou a desigualdade ao acesso da saúde e constituiu uma ilusória parcela de consumidores de serviços de saúde.”

Após ser avaliado pela equipe do serviço social, Cachoeiro recebeu o auxílio TFD junto ao ES. Foi incluído na lista de espera, realizou o transplante em dezembro de 2011 e após três meses recebeu autorização para voltar à sua cidade de origem. Apesar de Cachoeiro ter plano privado de saúde, ele buscou a assistência do sistema público quando se tratou de assistência de alta complexidade, como é o caso do transplante pulmonar. Segundo Souza (2011),5 “a iniciativa privada assume as patologias mais rentáveis associadas aos recursos terapêuticos mais lucrativos”. O custo do transplante pulmonar é grande, e cerca de 95% deste procedimento é custeado pelo SUS, diferentemente dos Estados Unidos da América, onde o transplante é custeado pelos planos privados de saúde ou por pagamento direto efetuado pelo paciente.6

Os atendimentos às atividades de alta complexidade no Brasil são responsáveis por um aporte do custeio federal com saúde e exerce grande impacto no orçamento. Apesar de não se dispor de dados oficiais sobre o número de atendimentos ambulatoriais aos pacientes transplantados, pode-se extrapolar da avaliação de outros serviços de alta complexidade, como quimioterapia, radioterapia, hemoterapia e hemodiálise. A região sudeste é responsável por 57,4% dos atendimentos do Brasil e 11,6% de todos os atendidos no SUS, com esta finalidade, possuem assistência privada de saúde.1

Sendo assim, algumas atividades de alta complexidade, como é o caso dos transplantes são impulsionadas pela articulação entre os setores público e privado, cabendo à esfera estatal o financiamento, enquanto ao privado, cabe a oferta de equipamentos e o gerenciamento dos recursos humanos. Não se pode aceitar que, conforme ficou claro neste relato, somente a população que possui convênio privado de saúde, consiga ter a agilidade necessária na realização dos exames para o transplante.

Referências

1 Santos IS, Ugá MAD, Porto SM. O mix público-privado no Sistema de Saúde Brasileiro: financiamento, oferta e utilização de serviços de saúde. Ciênc. saúde coletiva. 2008;13(5):1431-40.

2 Orens JB, Estenne M, Arcasoy S, Conte JV, Corris P, Egan JJ, et al. International guidelines for the selection of lung transplant candidates: 2006 update – a consensus report from the Pulmonary Scientific Council of the International Society for Heart and Lung Transplantation. J Heart Lung transplant. 2006;25(7):745-55.

3 Noronha KVMS, Andrade MV. Desigualdade social no acesso aos serviços de saúde na região sudeste do Brasil. X Seminário sobre a Economia Mineira. Disponível em: http://cedeplar.ufmg.br/diamantina2002/textos/D40.PDF [Acesso em 16 junho 2016].

4 Ribeiro MCSA, Barata RB, Almeida, MFde, Silva ZPda. Perfil sociodemográfico e padrão de utilização de serviços de saúde para usuários e não-usuários do SUS-PNAD 2003. Ciênc. saúde coletiva. 2006;11(4):1011-22.

5 Souza MASL de. Trabalho em saúde: as (re)configurações do processo de desregulação do trabalho. In: Davi J, Martiniano C, Patriota LM (orgs). Seguridade Social e Saúde: tendências e desafios. 2 ª Ed. Eduepb; 2011. p.147-174.

6 Marinho A. Um estudo sobre as filas para transplantes no Sistema Único de Saúde brasileiro. Cad. Saúde Pública. 2006;22(10):2229-39.

Autores

Luziélio Alves Sidney Filho1; Raquel de Matos Lopes Gentilli2; Luciana Carrupt Machado Sogame3

1 Mestre em Políticas Públicas e Desenvolvimento Local, Médico.

2 Doutora pela Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, Assistente Social, Professora da Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória –  EMESCAM.

3 Doutora pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, Fisioterapeuta, Professora da Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória –  EMESCAM.

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